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Jardel

  Há exatos trinta anos — precisamente no dia 19 de fevereiro de 1983 —, saí de casa, no Leblon, e fui de carro até a banca de jornais da Praça Nossa Senhora da Paz. Era lá que eu comprava as revistas e os jornais que vinham de fora do Rio e do exterior. Não […]

Por Daniela Pessoa Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 25 fev 2017, 19h14 - Publicado em 15 fev 2013, 18h56

 

Há exatos trinta anos — precisamente no dia 19 de fevereiro de 1983 —, saí de casa, no Leblon, e fui de carro até a banca de jornais da Praça Nossa Senhora da Paz. Era lá que eu comprava as revistas e os jornais que vinham de fora do Rio e do exterior. Não me lembro do horário, mas lembro que foi por volta do meio-dia. E que era sábado de muito sol, céu azul e praias cheias. Me lembro que estacionei na praça e que, antes de desligar o rádio, ouvi o prefixo de uma edição extra e o locutor anunciar a morte de um dos maiores atores brasileiros: “Acaba de morrer Jardel Filho, o Heitor da novela Sol de Verão”.

Me lembro que foi assim que se decretou a morte do personagem da minha novela e, junto com ele, do seu intérprete, meu amigo do fundo do coração. Do mais fundo do meu coração.

Me lembro que fiquei sem ação. Me lembro que, alguns minutos depois, desci do carro, mas não lembro se comprei os jornais e as revistas de costume. Nem de como saí dali e dirigi de volta ao Leblon, mas, curiosamente, me lembro de quando abri a porta do apartamento e lá encontrei, à minha espera, o Tony Ramos e o Paulo Figueiredo, fragilizados pela notícia. Não me lembro em que carro fomos nem de quem o dirigia, mas me lembro de chegar à Rua Peri, no Jardim Botânico, e ver um pequeno grupo de pessoas à porta do edifício onde o Jardel morava. Do elevador, da sala, do quarto onde o Jardel estava deitado, de um copo de água na mesinha de cabeceira… disso me lembro. Mas, das 100 pessoas ou mais que passaram por lá, cruzando comigo, só me lembro do Dias Gomes e de ele sentar-se ao lado da cama e ficar ali por muito tempo, em silêncio. Disso me lembro bem.

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Como de um filme a que assistimos entrando e saindo da sala do cinema, me lembro de algumas cenas esparsas, que muitas vezes parecem falhas de edição.

Me lembro que o Jardel não coube no caixão e que o colocamos no chão, sobre o tapete da sala, enquanto a funerária providenciava outro. Me lembro que éramos muitos a carregar o seu corpo, mas não lembro de ninguém que estivesse ao meu lado. Me lembro que ele estava com a barba de três dias e que isso nublava o seu belo rosto. E me lembro então que eu e o Paulo Figueiredo fizemos a barba do amigo morto, cuidadosamente, como se tivéssemos receio de feri-lo ou de acordá-lo do seu sono de paz.

Me lembro também que o caixão não coube no elevador e que tentamos descer com ele pela escada, de pé, escorados em muitas mãos. E me lembro do temor que senti com a possibilidade de o caixão abrir e o corpo desabar sobre os degraus.

Me lembro que em seguida, no saguão do Theatro Municipal, um acontecimento transformou o velório num happening. Era no sábado após a semana de Carnaval e naquele dia, tradicionalmente, realizava-se o Baile do Cordão da Bola Preta, em sua sede, poucos metros distante do Municipal. Sabedores de que o corpo do Jardel estava no teatro, para lá foram muitos foliões fantasiados, que desfilaram, sambaram e cantaram ao redor do caixão.

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Me lembro ainda que depois, no Cemitério São João Batista, o caixão não entrava no nicho que lhe era destinado, e foi então preciso que um pedreiro abrisse mais a fenda. Sentados sobre os túmulos vizinhos, esperamos pacientemente. Mas me pareceu, por causa de mais esse episódio, que o próprio Jardel retardava o momento de sair de cena.

Curiosa essa maneira de não lembrar, lembrando. Ou vice-versa. Quem faz essa seleção na nossa cabeça? Quem determina o que devemos lembrar e não lembrar de um acontecimento? Guimarães Rosa escreveu: “O que lembro, tenho”. Se assim é, quantas coisas perdemos e deixamos de ganhar no decorrer de nossa vida, com tudo o que esquecemos!

Num texto sobre a arte do ator, Albert Camus escreveu: “O ator reina no perecível. É sabido que de todas as glórias a sua é a mais efêmera. Por isso é ele quem extrai a melhor conclusão do fato de que, um dia, tudo tem de morrer”.

Pelo que lembro e até mesmo pelo que esqueço daquele sábado de trinta anos atrás, a morte do Jardel foi uma morte de protagonista. Palmas para ele.

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